Jun 29, 2008

Alguns conseguem...ter caráter

Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), o "Judas" brasileiro

A definição de caráter em qualquer dicionário é a mesma de personalidade, convicção, vontade, determinação natural. “Bertrand tem caráter”- Bertrand tem opinião, postura, certeza do que quer. Mas será que a realidade nos mostra isso?. Em todas as situações da vida lidamos com a questão do caráter, observamos infelizes que escorregam nele e somos cobrados para tê-lo. Especialmente nos meios corporativos, em que a ética é moeda de troca para promoção, plano de carreira, e benefícios, isso pode ser muito relativo. Hoje em dia, caráter é o positivo, é a qualidade de ser justo, de estar à altura de qualquer verificação aleatória de honestidade. Uma espécie de bafômetro para a santidade. Acontece que atualmente poderíamos arranjar um sinônimo para caráter: interesse. Fugindo do sentido religioso da coisa, temos dois lados para a mesma história, o do conceito e da moral. Seria Judas uma pessoa de caráter? Talvez não. Seria Pilatos, uma pessoa de caráter? Também não.

A fraqueza de Judas na traição ao seu mestre foi um gesto de incoerência, uma desobediência infantil por 30 pratas, algo que não lhe deixaria rico nem tampouco significava seu objetivo de vida, um interesse banal. Já o gesto do segundo, foi uma reação coerente para o povo e para o Império do qual fazia parte. Como funcionário romano, não era esperada nenhuma atitude diferente. Neste caso, por mais que Pilatos tivesse caráter, a sua obediência foi movida pelo interesse de se manter no cargo e não causar maiores transtornos para a ordem.

É preciso resgatar o sentido original desta palavra nos dias de hoje. Agir pelo interesse ególatra, ok, somos humanos. Agir com caráter, sempre, é necessário. Valorizar o verdadeiro caráter é cortar à navalha a moral; A mesma que garante ao humano a sua sobrevivência, lhe corta as asas da evolução. Sem crescer, o homem não se sustenta, acaba sendo levado pelas correntezas do momento, se torna um mero coadjuvante da sua própria história. Quem já não foi Judas ou Pilatos? Nem precisa dizer que apesar das motivações diferentes, eles próprios tiveram o mesmo destino, o suicídio.

Jun 21, 2008

Alguns conseguem...ter modéstia

Adão e Eva - Albrecht Dührer ((1471-1528) - Um casal modesto

Modéstia à parte. Quantas vezes já ouvimos isso? Milhares? Sempre?. Poucas vezes nos damos conta, de que esta frase se tornou praticamente inútil. A modéstia não precisa ficar à parte, ela simplesmente não existe mais no nosso tempo. Há milênios, Sócrates dizia maravilhas sem deixar escritos ou Praxísteles não assinava suas obras primas e até inventores revolucionários não cobravam royalties. Desde Jesus Cristo (Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Quer maior falta de modéstia?) o mundo vem implantando uma cultura em que o anônimo é o louco e o que existe, tem que aparecer (o orkut que o diga).

Ter modéstia é fazer nossas obras e atributos serem reconhecidos por si só, sem o nosso esforço. Não estou falando da modéstia religiosa ou étnica, que obriga mulheres a usarem burca no oriente e os homens usarem calça para controlarem seu ímpeto sexual no ocidente. Me refiro à cultura cotidiana, àquela obviamente percebida. Eis o Guiness Book! Melhores do século, primeiro lugar no vestibular, Top 10, use a expressão que quiser, a modéstia não existe, estamos na cultura da competição Descoberta? Não. Isso não é novidade. Mulheres menos modestas que homens? Talvez. Pobres mais modestos que ricos? Difícil (já inventaram o celular).

A modéstia vai muito além de cobrirmos a nossa nudez, muito além de dispensarmos o troco como cortesia, muito além de receber um elogio e enrubecer-se, além de deixar de dizer “Eu já sabia” quando seu time ganha. Nossa Senhora de Fátima disse aos pastores em 1917: “Certas modas serão introduzidas que ofender-se-ão meu Filho muito." Bom, ela percebeu que falta modéstia hoje em dia; É o que nunca mais teremos, graças ao nosso querido mundo capitalista e deliciosamente burguês.

Jun 14, 2008

Alguns conseguem...ver a rua

Pierre Verger, Les Dormeurs

O que é a rua hoje? conexão entre a nossa casa e onde queremos chegar. A rua nunca é o próprio destino. A rua não é o logradouro , não são as duas faixas para o trânsito e duas calçadas, a rua é o mundo, é tudo o que não está sob uma redoma social, é um ambiente inqualificável. A rua não é o nosso trabalho, a nossa escola, os conhecidos. A rua é o inseguro, o vazio, o você mesmo sem o que te ampara, é um espaço onde as leis podem ser suspensas e onde pode-se receber desde uma cantada até um tiro.

O lar sempre foi o nosso mais seguro templário, a base da nossa paz e sobrevivência. Considerando que todos somos pessoas já crescidas, alimentadas e que sabemos nos defender, poderíamos ter uma ligação mais lírica com a rua. Todos aí é eufemismo, na verdade, me dirijo a quem tem sensibilidade para isso. Olhar a rua pode ser um convite a perceber outras realidades, e isso não quer dizer abraçar um mendigo, dormir embaixo de árvores. Significa apenas observar. Observar as diversas variáveis às quais não estamos expostos, nos aproximarmos mais do frio que não nos permitimos sentir, da fome que nem imaginamos como seja, da busca pelo básico, do essencial – característica ausente nos tempos supérfluos atuais.

A rua nasce, como o homem, do solução, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cnatarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.

“João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas”

Jun 7, 2008

Alguns conseguem...manter a distância

Julia Roberts e Jude Law em Closer (2004) [referência óbvia]

De todos os desafios que envolvem os relacionamentos, guardar uma certa distância do ser amado é um dos grandes feitos. É sempre necessário nos precaver das armadilhas dos tempos de abundância. A reciprocidade é doce demais, sem ela não chegamos na esquina, não terminamos de tomar um sorvete.

Uma colar de pérolas, um presente sem embrulho, mil metáforas não ilustrariam como é chegar ao nosso limite sentimental. Pior do que não amar ou não ser amado, só a indiferença generalizada, tornar convencional o que era pra despertar furor. Como um animal que é seguido pelos instintos, o ser humano precisa de uma isca, da sua ração. Paradoxalmente, diria também que estamos sempre atrás do que nos perturba, do que nos despreza. Seja como amante ou como amigo, viver próximo demais a uma pessoa é tocar uma gravura com os dedos nus, um belo dia teremos apenas um pedaço sujo de papel, nada mais.